sexta-feira, 29 de abril de 2011

Diário dos Anjos




Agora são 15hs15min estamos passando a música do movimento VIII, música do personagem Frederico, que Cezar vai cantar, logo, eu que nunca cantei porra nenhuma vou ter que aprender. Eduardo lê uma poesia de Brecht, “lista de preferências”, Marco França já tenta musicar, para colocar na abertura do espetáculo, cena que acontece enquanto as personagens montam o cenário, criando fotografias que remetem a uma atmosfera de familia. As personagens entram em pares, e vão montando o cenário como um quebra-cabeça, as improvisações são bem divertidas, entre uma peça e outra eles param para uma foto...

Diário de bordo, “O casamento do pequeno burguês”Grupo Clowns de Shakespeare terça feira 24 de janeiro, 2006



Em 2006 eu tive o grande prazer de fazer parte da família clowns de Shakespeare. Eu estava num momento de buscas, faço teatro desde 1997, mas foi por volta de 2005 que decidi que essa seria a minha profissão, independente dos frutos que ela me desse, em 2005 fui aluno de Fernando Yamamoto nas oficinas do Centro Experimental de Teatro (Natal-RN). O Clowns de Shakespeare estava num momento de transição, apesar do “Muito Barulho por Quase Nada” já ter sido um sucesso nacional, o grupo ainda estava buscando uma sede, um endereço, um lugar para viver e criar seus filhos, e ainda com seu elenco sem poder se dedicar integralmente ao grupo por necessidades financeiras. Mas, naquele ano veio a aprovação do Miriam Muniz para a montagem da peça “O Casamento do Pequeno Burguês” de B. Brecht, com o financiamento federal, o grupo pode alugar uma sede e colocar ajuda de custo além de cachê para seus integrantes. Nesse momento Fernando me convidou junto com outras seis pessoas, Camile, Bico, Potyra, e outros para ser “anjo”, que seria estar vivendo o processo de criação junto com os atores participando dos seminários, workshops, ensaios e produção, estar pronto para possíveis substituições. Eu tinha uma diferenciação entre os outros anjos, eu era o anjo de Cezar Ferrario, que na época não podia está em todos os encontros da montagem, nesse caso sua ajuda de custo foi dividida comigo, e de mim foi cobrado uma presença integral ao espetáculo, eu topei na hora, e esse foi um processo completamente especial e diferente de todos que já participei. Acredito que esse foi um processo especial também para Cezar que decidiu largar a vida de empresário e se dedicar totalmente ao Clowns de S. O mesmo aconteceu com Ronaldo Costa, Iluminador do Grupo e com Camile Bezerra, o mesmo também acontecia comigo, largar tudo e viver de arte, o que é engraçado, já que estávamos na criação de um “Pequeno Burguês”, talvez e inconscientemente estivéssemos todos embriagados pelo espetáculo de Brecht, que não era um teatro épico, mas uma grande crítica à sociedade fútil, que oprime com valores medíocres, que compra e se vende para vencer crises, sociedade do mundo todo, sociedade de hoje que limita a palavra felicidade, ao tênis Nike, ou um carro 0km, um casamento infeliz e a um falso conforto mergulhado num vazio existencial na frente da TV. Um viva àqueles que mesmos sozinhos e em seus guetos lutam para se tornarem seres humanos melhores.

Acredito que na prática o trabalho com os anjos foi bem diferente daquilo que Fernando tinha idealizado, mas, acredito que a experiência foi muito valida para “anjos e demônios” de cara 4 anjos desistiram, no final tinha eu e Camile, e já estávamos por dentro de tudo, o texto, as cenas, a parte de contra-regragem do espetáculo além da cenário e iluminação, todos nos tratavam muito bem, e constantemente dividiam suas criações, dúvidas e angústias conosco era a hora que mais nos sentíamos anjos. Me lembro de ter ouvido várias críticas em relação a minha participação, pessoas que achavam que meu lugar não era ali, que eu não precisava ser anjo, as pessoas se preocupavam mais em me jogar contra o clowns do que desenvolver um pensamento sobre o trabalho do anjo. Nunca me deixei levar por esses comentários e se pudesse repetiria tudo de novo.

Mas afinal o que é um anjo, não me colocaria como na cultura judaico-cristã, para o anjo de um grupo de teatro não é necessitar de ações que remetem a uma beleza, angelical, nem se encher de virtude e inocência, muito menos ser superior aos homens. Mas, como é impossível não impregnar tudo que transpira no ocidente com a cultura judaico-cristão, o anjo de um grupo vela, guarda e protege dentre outras coisas, e talvez seja dessas “outras coisas” que devo escrever, já que nessa experiência, o anjo é um importante elemento (alguém) que compõe o processo de criação. Importante¿ então devemos convidar pessoas para estar presentes colaborando nos processos de criação¿ Não, e foi ai que minha experiência me valeu. Quando fui anjo tive contato constante com três coisas que para mim são fundamentais na carreira de um artista, e na construção do cidadão, humildade, generosidade e confiança para mim essas palavras são verdadeiros pilares faltando ainda o amor, mas amor é igual a futebol e religião, não se discute! Não vou me deter a essa palavra, pois seria redundante e desnecessário diante do conteúdo deste diário. Quando comecei o trabalho de anjo, comecei escrevendo tudo que acontecia no processo de criação do espetáculo, em casa estudava o texto, Brecht, os seminários que íamos produzindo. Nas ausências de Cezar, ensaiava e definia as marcas da cena, depois repassava tudo que era feito e dito para ele, fazíamos os workshops e discutíamos tudo junto a direção de Eduardo Moreira e Fernando Y. Fiz todas as oficinas, e que oficinas! Maquiagem com Mona Magalhães e Atuação Polifônica com Ernani Maleta que dividia a direção musical com Marco França. Quando o espetáculo já estava levantado, comecei a trabalhar na técnica, principalmente cenário e figurino, na temporada do espetáculo fazia a montagem e contra-regragem. No momento em que Cezar já não faltava mais aos ensaios, e não havia a possibilidade substituí-lo, eu sinto que virei anjo da encenação como um todo e o mesmo aconteceu com Camile, foi ai que as relações ficaram mais fortes, a confiança já era algo forte e inquebrável, era a sensação de poder contar com o outro, pode se jogar, se deixar cair, levantamos juntos, atendíamos, opinávamos, e criávamos, estávamos sempre dispostos a fazer o que fosse necessário para o melhor da encenação, havia muita generosidade na idéia do outro, nada era descartado, a não ser que já fosse experimentado, apesar de achar que o resultado final foi textocentrico o processo mostrou muita criatividade e o texto era transformado várias vezes em experimentos dos atores e anjos. Tinha uma grande gratidão ao grupo por aquela oportunidade e tentava agradecer com uma disposição a servir o espetáculo, o grupo, a sede, lavava o banheiro, fazia o café, limpava o chão, todos faziam isso, sempre encarava como uma lição, um aprendizado como os budista do templo de shaolin (adoro filmes de kung fu). Mas todos desempenhavam essas funções claro que uns aprendem mais do que outros, pois se você entra na sua sede e lava o banheiro, não pode achar que esta fazendo uma grande ação, a ponto de criticar aquele que não o fez. O trabalho dos anjos caracterizava ainda mais o processo colaborativo do “teatro de grupo” ao ponto que anjos se tornavam atores e atores se tornavam anjos. Percebi que ser anjo deve ser uma projeção do ator para um convívio saudável com sua profissão, “Atores Anjos” se protegem, buscam o conhecimento e servem a encenação, são simplesmente “submissos” a uma rede que começa na escolha de um texto e vai até o espectador. Mas, não devemos pensar apenas num serviçal, daí minha importância em comparar esses atores com alunos do templo de shaolin (essa comparação é pretensiosa, mas vale com exemplo), serviçal não pensa apenas faz, o ator que também é anjo tem uma convicção diante do mundo que vive tem sensibilidade para discutir o fazer artístico dentro das camadas sociais e de todas as culturas, ele protege seus pensamentos e seus ideais e não permite se vender ao vazio, jamais usa o tapa olho que faz o jumento só andar para frente. São muitos os estudos e teorias que revelam a importância que tem o ator em ter propriedade sobre a encenação, o discurso que o espetáculo expõe, conhecimento técnico da luz, do cenário, da contra-regragem e de outras linguagens como a dança e a música, mas anjos ainda estão além, a proteção é uma palavra pertinente nos dias de trabalho, portanto atores que querem ser anjos, tenham atenção aos horários, ao cronograma de trabalho, proteja seu corpo, não destrua o outro, cuidado com que o outro construiu, tenha cuidado com comentários, piadas, preguiça em momentos de trabalho, não fale ou fique cochichando enquanto outro fala, entupindo o “templo de criação” com as fofocas da balada da noite passada, proteja o cenário, guarde seu figurino e o mantenha sempre limpo, exercite a mente com leituras constantes, tenha mais disposição para ouvir que para falar, seja “ritualístico” com o dia de trabalho, se prepare para o ensaio, deixe sua casca em casa e leve sua alma que é o essencial, não falte com o outro e mostre que todos podem confiar em você, o respeito e o silêncio são suas armas. Eu necessitaria de muito mais dedicação a este tema para esmiuçar sobre o que acredito serem “Atores Anjos”, talvez não ache exemplos eu mesmo não sou, mas falando em cultura judaico cristã: “nunca seremos anjos mas tentaremos ser dentro do já somos”, uma pesquisa vai ficar mais para frente, não é esse o objetivo no momento, mas acredito ter levantado alguns caminhos para nos tornarmos anjos e construirmos os pilares dos anjos (generosidade, humildade, confiança e amor), disciplina é a palavra, mas, como diria um amigo “o bom da festa não é a festa em si, mas sim, a ansiedade da preparação da festa”. Então vamos à busca do nosso diário dos anjos.

2 comentários:

Alex Cordeiro disse...

Uma busca nada fácil essa de tornar-se um "Ator Anjo"... Um indíviduo nada parecido com os bonequinhos barrocos de cabelo encaracolado dourado que permeiam o imaginário cultural do censo comum. Este indivíduo, meu amigo, proposto por você, que busca uma disciplina sublime pautada nos princípios solidários de entrega ao trabalho, as relaçoes sociais e ao afeto, é desafiador. Diria que este "ser sagrado" é movido por uma escolha e imprime uma ordem de desconstrução da rotina social apresentada na paisagem repetida de nossa sociedade, que são os falidos sistemas de convivência da da família "Pequena Burguesa". Leio teu diário tão sincero, e me encho de estímulos em busca de uma posição particular "solitária e silenciosa" (como tú sugeres) que questione os padrões de um fazer artístico no teatro. Que fuja dos autoritarismos e estimule a autonomia criativa. Espero ansioso pelo próximo diário seu. O diário de um "ator anjo".

César Ferrario disse...

Tamo aqui amigo, acompanhando!