Abrindo as cortinas
do quarto “O bico do beija flor, beija a flor, beija flor e toda fauna flora
grita de amor” (Chico Science) Acordo nesse dia 03 de agosto de 2013, é hora do
café, é hora de algumas frutas e pra fugir do som dos humanos que comem e
aquecem suas cordas vocais, suas línguas e seus músculos faciais, escolhi um
cantinho na frente de um vidro que transparecia o “velho Chico” ali admirei! Que
grande! Que belo! E lembrei do meu humilde sonho de nordestino de conhecer o
Rio São Francisco tão cantado em violas e poesias dos artistas dessa terra de
fumo, suor e sangue. Na próxima parte do café o velho e irresistível cuscuz com
salsicha agora com os humanos, um deles me cumprimenta.
Tudo bom, já te vi em
algum lugar!
Acho que sou parecido
com alguém que você conhece...
Não, não o eu já te
vi em algum lugar!
Bucho cheio, pé na
estrada “vamos ao trabalho, vamos ao trabalho” (titãs) no set, aprendizado, êita
que é gente! Impressionantemente muita gente boa! No cenário uma garrafa com
uma vela derretida em cima me chama atenção tinha um rotulo que dizia: Velho Chico, lembrei mais uma vez do rio. Um
dia de gravação... Silêncio! É prece!
Sempre! “Coração, desejo e sina” (Djavan) Esforço que nem cabe nessas linhas,
pois não ouvi nenhuma música, não no celular, a música do set é para todos os
ouvidos, é comunhão, é concentração é dionisíaca! Na volta sim! Música no
celular “é bom pra ioiô, é bom pra iaiá” (Gilberto Gil) de volta ao hotel
percebi que ainda era de tarde, obrigado! Uma voltinha no sol “como pássaro o
tempo voa a procura do exato momento onde o que você pode fazer fosse agora”
(Chico Science) Opa! Mas eu levo ou não o celular? Tá tão perigoso, vou
levar! “Andar com fé eu vou, que a fé
não costuma faiá” (Gilberto Gil) Atravessei a ponte que divide Petrolina cidade
que estava hospedado e Juazeiro cidade que estava trabalhando. Uma caminhada
cheia de gente, comércio, sons e a festa as margens do Velho Chico me fazem
lembrar que é sabadão! O sol se põe,
resolvo voltar, cruzar a ponte antes de a lua surgir, cansado de tanta musica
nos meus ouvidos humanos, resolvo tirar os fones de ouvido, mas, deixo o som
chiando pendurado na gola da camisa, pronto! Vou jantar lembrei imediatamente
da pizza de ontem geladinha no quarto do hotel, pizza fria é uma delicia. Quando
chego ao exato centro da ponte que cruza o São Francisco escuto:
Socorro! Me ajuda!
Nem acreditei, olhei
primeiro a avenida, encostei-me ao para peito da ponte e debaixo surgiu um ser
humano do sexo feminino sendo arrastado pela correnteza a uns 20KM por hora. Ela
me viu.
Socorro! Me ajuda!
Socorro! Me ajuda!
Sacudindo os braços,
afundando e voltando, se engasgando!
Dei um passo pra
esquerda, outro pra direita e pensei: Vou pular! Peraí! Vou, no mínimo, quebrar
a perna aqui!
Eu olhei o olho dela
e ela me chamou de esperança, mas o tempo não volta, o sol estava indo embora,
mais um minuto e ela estaria na escuridão onde nenhuma visão humana (mesmo
ouvindo música no celular) poderia Enxergar, gritei socorro para carros a
oitenta por hora. Eis que surge um ser humano que não estava ouvindo musica no
celular, estava numa bicicleta, me olhou
como quem vê um lobo, ou uma raposa, ele não acreditou. Normal alguns seres
humanos não reconhecem outros seres humanos.
Tem uma mulher se
afogando corre e avisa pras pessoas que estão lá embaixo! Vai! Vai! Vai!
Ele ficou meio sem
acreditar e foi. Ainda conseguia ver a mulher, mas, meus ouvidos já não escutavam seus gritos, ela usou muita
força para chamar minha atenção ela estava nas ultimas, eis que surge outro
homem numa bicicleta. Pessoas de bicicleta sem ouvir música no celular atravessam
direto aquela ponte. Mas esse ser humano era pelo menos 30 anos mais velho que
o primeiro foi muito mais difícil convence-lo de que era verdade ele continuou
cruzando a ponte. Gritei:
Calma!
Vou eu mesmo pedir ajuda,
mas, e se eu perder ela pra escuridão do rio? Não podia fazer nada ali em cima,
corri atrás de ajuda, encontrei mais seres humanos que não ouviam musicas no
celular e eu vibrava entre eles que não se mexiam apenas viravam a cabeça para
o rio demorei alguns segundos para perceber que eles estavam dando ela como
morta quando na verdade ela lutava feito uma leoa.
Não! Ela está viva!
Tu viu ela passando
no meio da ponte foi? (risos) já era! A pessoa afunda!
Percebi que os seres
humanos que não estavam ouvindo música no celular são extremamente realistas. O
ser humano que me viu como um lobo conseguiu se comunicar com outros seres
humanos que estavam num barco que foi procura-la, voltei a ponte e a mulher
tinha sumido pra sempre, pelo menos da minha vida. Juntando lobo, raposa e leoa
descubro que é quando parecemos animais que somos mais humanos. No final
percebi que só eu tinha visto de verdade o que aconteceu. Ninguém tinha perdido
ninguém. As lagrimas que se seguiram não servem para esse texto. “Mau me quer a
vida segue seu lamento num tanto flor, Leito de rio, no cio, um cheiro de amor,
é amor quando não diz é fogo por um tris um trem entrou no meu eu” (Djavan)
Como desejei que
aquela ponte fosse um set de filmagem, que aquilo tudo fosse um filme, com
trinta pessoas maravilhosas e determinadas a dar o melhor de se, figurinistas,
maquiadores, técnicos de luz, de áudio, produtores, uma dezena deles! Como
desejei que tivesse ali uma câmera de ombro com um diretor dizendo:
Luz, câmera, ação!
Pula Enio, mergulha! Deixa a gente pensar que você morreu! Agora emerge! Pega
ela com a mão esquerda e nada com a direita! Leva ela para a margem do rio,
isso! Respiração boca a boca! Ela acorda olha pra ele, olhar apaixonado! Beija!
Corta! Valeu pessoal!
Não sou policial,
bombeiro, salva vidas ou médico. Não fiz nenhum juramento pela vida, mas, não
importa muitos fazem juramentos e não cumprem. “somos o que somos
inclassificáveis” (Arnaldo Antunes) Sou um artista, todos os dias me pergunto
qual meu papel nesse mundo e talvez seja de dizer que a vida não é uma ficção e
que devemos ser mais seres humanos na vida real que na ficção.
Depois da pizza
gelada com gosto de lagrima dormi duas horas e acordei dizendo:
Preciso de seres
humanos!
Desci ao saguão do
hotel onde pude contar pra alguém minha história, mas, as pessoas iam sair para
ouvir musica sem o celular, juntas! Outros foram dormir percebi que estava ficando
sozinho, eu pensei: Eu não posso ficar só e se eu vejo alguma coisa, quem irá
acreditar em mim?
Então aquele ser
humano que me encontrou no café da manhã e disse que me conhecia apareceu e me
ofereceu seus ouvidos. Alguns seres humanos tem ótimos ouvidos, ouvir é um
verdadeiro dom e pouquíssimas pessoas conseguem, portanto se você ver um ouvido
gigante por ai, encoste nele, pode ser um ser humano. Ele me ouviu e me fez
enxergar o quanto estava sendo egoísta na minha dor. Seres humanos que ouvem
tem a capacidade de se tornar espelhos de nossas almas e eu que “quis lutar
contra o poder do amor, cai nos pés do vencedor para ser um serviçal samurai
Ai! Mas, eu tô tão feliz!” (Djavan)
Talvez, ter tirado os
fones do ouvido não tenha mudado nada na vida daquele ser humano do sexo
feminino, mas, a minha mudou completamente. Na manhã seguinte o mesmo ser
humano que disse que me conhecia, e que tinha me ouvido disse:
Escreve!
O que?
A história!
Tá! Vou escrever.
Aqui estou eu no
aeroporto digitando e é claro! Ouvindo música no celular, voltando pros braços
da minha amada e dos meus filhos que pretendo proteger das pessoas que não
estão ouvindo música no celular, prometendo
a mim mesmo que um dia volto a “Petrolina, juazeiro, Juazeiro, Petrolina todas
duas eu acho uma coisa linda eu gosto de juazeiro e adoro Petrolina” (Luiz
Gonzaga) e “na dor eu passo um giz, na lição que o sol me traduz, viver da
própria luz!” (Djavan)
Enio Cavalcante